Por Victor Bigelli de Carvalho*
Inspirado em “Intermitências da Morte”, Saramago
O governo aconselha e recomenda às direções e às administrações hospitalares que, após uma análise rigorosa, caso por caso, da situação clínica dos doentes que se encontrem naquela situação e, confirmando-se a irreversibilidade dos respectivos processos mórbidos, sejam eles entregues aos cuidados das famílias, assumindo os estabelecimentos hospitalares a responsabilidade de assegurar aos enfermos, sem reserva, todos os tratamentos e exames que os seus médicos de cabeçeira ainda julguem necessários ou simplesmente aconselháveis....”
Imaginem a situação: todas as pessoas de um país, incluindo os doentes graves e os moribundos, não morrem mais. A primeira vista trata-se de uma benção - a tão esperada vida eterna. Que país privilegiado! Todos saem às ruas para comemorar o fato jamais visto na histótia da humanidade. Políticos aproveitam a situação e declaram que somente em seu governo poderia acontecer tal milagre com seu querido povo. Basta pouco tempo para euforia inicial se transformar em preocupação. Multilados em acidentes de trânsito, velhos agonizantes, dementes de qualquer gênero –já que não morrem mais – acumulam-se aos montes. Donos de funerárias revoltam-se
com o fato de lhes terem eliminado seu “ganha-pão”. Os hospitais ficam caóticos pois há lotação de pacientes com uma eterna, desagradável e moribunda vida. As famílias – compostas pelos mesmos que no passado recente saíram às ruas para glorificar o milagre ocorrido- lamentam, pois não há vagas nos hospitais para os novos doentes ou semi-defuntos.


É nesse contexto que provavelmente surgem as idéias basaglianas na Itália que depois influenciaram diversos países, inclusive o Brasil. Partindo deste ponto, se inicia a luta pela desinstitucionalização do doente mental. Em nosso país, demora um pouco, mas a sociedade se mobiliza, ao mesmo tempo em que se cria uma nova Constituição e o Sistema Único de Saúde. Após Conferências Nacionais de Saúde Mental e aprovação da Lei Federal 10216 inicia-se o fim do modelo hospitalocêntrico de política de Saúde Mental. Resultado: fecham-se hospitais, diminuem-se os leitos psiquiátricos disponíveis, pacientes são mandados de volta às suas famílias e às suas casas sem que seja criada uma estrutura adequada para isto, mesmo com a proposta dos CAPS, deixando nossos doentes à sorte. A continuação nós já conhecemos, mas alguns continuam a negar. A doença mental cresce no Brasil e no Mundo, e isto inclui os pacientes psicóticos crônicos graves (“loucos”). Temos dificuldades de dar suporte a eles. Apesar de todo desenvolviemnto técnico-científico, com maior confiabilidade no diagnóstico e com o desenvolvimento de diversas drogas psicotrópicas que nos auxiliam no tratamento, há ainda aqueles que negam a existência da doença psiquiátrica. Trata-se de um anacronismo, um culto a ignorância, esta que por sua vez é terreno fértil para o preconceito. Primeiro, não há graça em ser louco como algumas vezes a mídia quer demonstrar. Ninguém escolheria se sentir perseguido e ameaçado; ninguém gosta de ouvir vozes que te depreciam ou te mandam fazer coisas diferentes da sua vontade, principalmente quando isto pode envolver violência e sofrimento da família do doente e da própria sociedade. Digo mais, como cidadão você não se sentiria culpado ou irresponsável sabendo que para esses pacientes há esperança e não um destino fechado de vivências delirantes ameaçadoras? Se conforta com o fato destes doentes estarem marginalizados pela sociedade e pela estrutura assistencial, vivendo nas ruas conhecidos como mendigo, doidinho ou lelé? Não é porque o louco não compartilha de nossa razão, que não sofre ou não merece nosso engajamento. Infelizmente, como eles não tem esta lucidez, que é necessária ao enfrentamento e à luta, não podem se responsabilizar pela própria mudança de suas vidas. Na atual configuração da política de Saúde Mental brasileira, que não dispõe de profissionais ou hospitais qualificados, que ignora o fato de existirem doentes crônicos cujas famílias não conseguem manejar, que não dispõe de centros psiquiátricos estruturados para sua população, de forma alguma é prestado bom serviço de saúde. Torça para nunca ficar doente, e se ficar espere não ter nascido pobre. Se ainda porventura for rico e ficar doente, torça para que esta não seja a mental. A lei para a assistência psiquiátrica existe e pretende ser bonita no papel, mas na prática é desigual, insensata e excludente.
Agora, lembraremos do início deste texto para última reflexão:
“Havia muitos loucos naquele país, mas ninguém acreditava de fato que eram doentes. Acumulavam-se aos montes e os hospitais ficavam abarrotados, deixando de atender quem de fato era lúcido e realmente sofria e precisava. Acreditava-se, a contragosto dos psiquiatras, que estes pacientes não melhorariam, nem piorariam, ficando como que suspensos. Suspensos da razão, da realidade, da esperança e de suas vidas. Portanto, o governo aconselhou e recomendou às direções e às administrações hospitalares que, após uma análise rigorosa, caso por caso, da situação clínica dos doentes que se encontravam naquela situação e, confirmando-se a irreversibilidade dos respectivos processos mórbidos, fossem eles entregues aos cuidados das famílias, como sempre bastante estruturadas, assumindo os estabelecimentos hospitalares a
responsabilidade de assegurar aos enfermos, sem reserva, todos os tratamentos e exames que os seus médicos de cabeçeira ainda julgassem necessários ou simplesmente aconselháveis...”
*o Dr. Victor Bigelli de Carvalho é médico residente do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da FMUSP.