18 de junho de 2010

A Loucura suspensa

Após trinta dias de silêncio por motivos acadêmicos, o blog retorna hoje com uma pequena homenagem a José Saramago

Por Victor Bigelli de Carvalho
*
Inspirado em “Intermitências da Morte”, Saramago

O governo aconselha e recomenda às direções e às administrações hospitalares que, após uma análise rigorosa, caso por caso, da situação clínica dos doentes que se encontrem naquela situação e, confirmando-se a irreversibilidade dos respectivos processos mórbidos, sejam eles entregues aos cuidados das famílias, assumindo os estabelecimentos hospitalares a responsabilidade de assegurar aos enfermos, sem reserva, todos os tratamentos e exames que os seus médicos de cabeçeira ainda julguem necessários ou simplesmente aconselháveis....”
Imaginem a situação: todas as pessoas de um país, incluindo os doentes graves e os moribundos, não morrem mais. A primeira vista trata-se de uma benção - a tão esperada vida eterna. Que país privilegiado! Todos saem às ruas para comemorar o fato jamais visto na histótia da humanidade. Políticos aproveitam a situação e declaram que somente em seu governo poderia acontecer tal milagre com seu querido povo. Basta pouco tempo para euforia inicial se transformar em preocupação. Multilados em acidentes de trânsito, velhos agonizantes, dementes de qualquer gênero –já que não morrem mais – acumulam-se aos montes. Donos de funerárias revoltam-se
com o fato de lhes terem eliminado seu “ganha-pão”. Os hospitais ficam caóticos pois há lotação de pacientes com uma eterna, desagradável e moribunda vida. As famílias – compostas pelos mesmos que no passado recente saíram às ruas para glorificar o milagre ocorrido- lamentam, pois não há vagas nos hospitais para os novos doentes ou semi-defuntos.

O que tem isso a ver com a Psiquiatria e a sua Reforma política? Vou me ater aqui aos chamados “loucos” porque costumam chamar mais atenção de nossa sociedade. Todos sabem que ao longo do tempo o conceito de doença mental se modificou. Partindo-se de uma lógica fantástica, mística e religiosa progrediu-se para uma visão mais baseada em modelos psicossociais, dinâmicos e agora também biológicos da doença mental. Passamos pelo útero, pelas bruxas, pelo Édipo, progredindo até os receptores dopaminérgicos cerebrais. Durante todo esse processo de evolução do conhecimento surgiu a necessidade de cuidar desses pacientes disfuncionais, alienados e que estavam a margem de nossa razão. Não podíamos mais julgá-los não merecedores de nosso convívio social devido a preconceitos fundamentados à partir de nossa ignorância. “Ora, são pessoas doentes e portanto devemos tratá-las”. Partindo-se deste princípio se criaram os primeiros hospitais e asilos psiquiátricos no mundo. Creio que esta atitude partia de uma boa intenção, baseada no auxílio ao doente, suporte ao sofrimento e alívio da dor pessoal, da sociedade e da familia que não tinham estrutura para lidar com esses pacientes, nem ao menos compreendiam por inteiro o que acontecia com estas mentes desvairadas. Visto que os recursos terapêuticos eram nulos naquela época, cuidar destes doentes, num asilo ou hospital específico, seria uma proposta mais humana – protegê-los de sua inadequação no mundo e poupá-los dos riscos inerentes da doença mental como a agressividade, a ausência de cuidados de higiene e o próprio suicídio. O problema é que com o tempo a proposta inicial se distorceu, criando espaço para que conflitos e interesses secundários aparecessem com maior clareza. Isto ocorreu em diversas esferas, quer seja política, econômica e/ou ideológica, persistindo até os dias de hoje. Alguns começaram a alegar que os loucos não são de fato doentes, mas simplesmente tem um contato diferente com a realidade (chegam até a afirmar que os mesmos são abençoados por isto). Outros, baseado em interesses pessoais de crescimento profissional e pessoal enxergam toda situação de conflito em relação ao tema como uma possibilidade de ganhar notoriedade e alavancar a carreira. Por fim, há aqueles que sempre observam na situação uma ótima possibilidade de aumentar seu patrimônio financeiro, fazendo com que os asilos funcionem mais como simples depósitos em que os doentes são submetidos a condições deploráveis do que instituições propriamente acolhedoras ou terapêuticas – erro mais de natureza humana que institucional em si. Não é de se surpreender que após este movimento inicial, observando-se a deturpação da proposta original, houvesse um contragolpe em relação a isto em que se questionasse a existência desses asilos, sua utilidade e a própria concepção de doente mental e da psiquiatria. Diriam: “Quem define o que é normal? O psiquiatra? Como, se nem sabemos ao certo o que é a Psiquiatria? Qual é tanto o poder que eles pensam que tem? Por que devemos privar uma pessoa de sua liberdade simplesmente por ser diferente?” Alguns percebem este fato, e contrariando a evolução do conhecimento científico dos transtornos mentais, começam a propagar a imagem falsa dos idealizadores daquelas instituições, acusando-os de desumanos e torturadores. Desta forma, famílias e pessoas - ignorantes do real problema e manipulados pela ilógica propaganda antimanicomial e antipsiquiátrica - acolhem esta idéia como verdadira e inicam um moviemento contra os ditos carrascos - ladrões da liberdade e apologistas da clausura. E assim, em vez de se reestruturar as instituições criadas (hospitais e asilos psiquiátricos), cuja idéia inicial foi de auxílio ao doente, opta-se por sua extinção.



É nesse contexto que provavelmente surgem as idéias basaglianas na Itália que depois influenciaram diversos países, inclusive o Brasil. Partindo deste ponto, se inicia a luta pela desinstitucionalização do doente mental. Em nosso país, demora um pouco, mas a sociedade se mobiliza, ao mesmo tempo em que se cria uma nova Constituição e o Sistema Único de Saúde. Após Conferências Nacionais de Saúde Mental e aprovação da Lei Federal 10216 inicia-se o fim do modelo hospitalocêntrico de política de Saúde Mental. Resultado: fecham-se hospitais, diminuem-se os leitos psiquiátricos disponíveis, pacientes são mandados de volta às suas famílias e às suas casas sem que seja criada uma estrutura adequada para isto, mesmo com a proposta dos CAPS, deixando nossos doentes à sorte. A continuação nós já conhecemos, mas alguns continuam a negar. A doença mental cresce no Brasil e no Mundo, e isto inclui os pacientes psicóticos crônicos graves (“loucos”). Temos dificuldades de dar suporte a eles. Apesar de todo desenvolviemnto técnico-científico, com maior confiabilidade no diagnóstico e com o desenvolvimento de diversas drogas psicotrópicas que nos auxiliam no tratamento, há ainda aqueles que negam a existência da doença psiquiátrica. Trata-se de um anacronismo, um culto a ignorância, esta que por sua vez é terreno fértil para o preconceito. Primeiro, não há graça em ser louco como algumas vezes a mídia quer demonstrar. Ninguém escolheria se sentir perseguido e ameaçado; ninguém gosta de ouvir vozes que te depreciam ou te mandam fazer coisas diferentes da sua vontade, principalmente quando isto pode envolver violência e sofrimento da família do doente e da própria sociedade. Digo mais, como cidadão você não se sentiria culpado ou irresponsável sabendo que para esses pacientes há esperança e não um destino fechado de vivências delirantes ameaçadoras? Se conforta com o fato destes doentes estarem marginalizados pela sociedade e pela estrutura assistencial, vivendo nas ruas conhecidos como mendigo, doidinho ou lelé? Não é porque o louco não compartilha de nossa razão, que não sofre ou não merece nosso engajamento. Infelizmente, como eles não tem esta lucidez, que é necessária ao enfrentamento e à luta, não podem se responsabilizar pela própria mudança de suas vidas. Na atual configuração da política de Saúde Mental brasileira, que não dispõe de profissionais ou hospitais qualificados, que ignora o fato de existirem doentes crônicos cujas famílias não conseguem manejar, que não dispõe de centros psiquiátricos estruturados para sua população, de forma alguma é prestado bom serviço de saúde. Torça para nunca ficar doente, e se ficar espere não ter nascido pobre. Se ainda porventura for rico e ficar doente, torça para que esta não seja a mental. A lei para a assistência psiquiátrica existe e pretende ser bonita no papel, mas na prática é desigual, insensata e excludente.

Agora, lembraremos do início deste texto para última reflexão:

“Havia muitos loucos naquele país, mas ninguém acreditava de fato que eram doentes. Acumulavam-se aos montes e os hospitais ficavam abarrotados, deixando de atender quem de fato era lúcido e realmente sofria e precisava. Acreditava-se, a contragosto dos psiquiatras, que estes pacientes não melhorariam, nem piorariam, ficando como que suspensos. Suspensos da razão, da realidade, da esperança e de suas vidas. Portanto, o governo aconselhou e recomendou às direções e às administrações hospitalares que, após uma análise rigorosa, caso por caso, da situação clínica dos doentes que se encontravam naquela situação e, confirmando-se a irreversibilidade dos respectivos processos mórbidos, fossem eles entregues aos cuidados das famílias, como sempre bastante estruturadas, assumindo os estabelecimentos hospitalares a
responsabilidade de assegurar aos enfermos, sem reserva, todos os tratamentos e exames que os seus médicos de cabeçeira ainda julgassem necessários ou simplesmente aconselháveis...”

*o Dr. Victor Bigelli de Carvalho é médico residente do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da FMUSP.

3 comentários:

  1. Bem sacada a idéia! Parabéns ao autor e ao meu colega por ceder espaço para um tema que gera grande desgaste entre classes, e cujo grande penalizado, sem dúvida, é o paciente.

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  2. Obrigado Ana! Fico feliz que ficou sabendo do blog...

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  3. Parabéns pelo blog, tem coisas muito interessantes, foge do lugar comum de postar informação psicoeducacional e servir de vitrine para consultório. muito legal mesmo.
    por que o titulo the strange loop? fiquei curiosa....

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